quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Coletivos I - Sereno iluminado

Final de expediente. Iniciei o meu caminho, dessa vez, direto para casa. Como já faz parte da rotina, a condução que necessito demora a aparecer, porém, dessa vez, o sereno caindo e a pressa aumentando, saí do escritório sem o bendito guarda-chuva e comecei a perceber que o sereno evoluía. ‘Só falta virar chuva’ – pensei.
Eu que já previa a demora – ‘previa’ nada, afinal, rotina é rotina, mas mesmo assim, torcia para que a demora não acontecesse – havia jogado na bolsa um livro para ajudar a encurtar o percurso, caso o motorista bondoso viesse a passar pelos caminhos menos vibrantes. Lendo, compreendendo, me identificando com alguns dos poemas de Leonor Vieira-Motta, selecionando algumas páginas com um clipe ou uma dobra no cantinho da folha – visto que o livro me pertence, não dobraria um livro emprestado – parei no poema intitulado “Para estar vivo basta morrer”. Espero que Leonor – que já tive o prazer de conhecer em um momento inesperado e memorável; uma das edições do Sarau Imortais: Mulheres – não fique brava ao ver que citei seu poema sem permissão, mas eu não resisto aos versos que de alguma forma me tocam ou que me identifico:
"Morre-se de rir / de quem morreu de susto..."
Não teve jeito, logo ri, lembrando de uma cena de um susto alheio da qual caí na gargalhada... Desculpem a minha memória bem humorada. Concentrando no poema...

"Morre-se de rir
de quem morreu de susto
e de fome
de que também se morre.

Morre-se de raiva
de quem morreu de inveja
e de tristeza
de que também se morre.

Morre-se de pena
de quem morreu de vontade
e de medo
de que também se morre.

De paixão também se morre
quem sobrevive
não morre de véspera
morre de amor."

O ônibus parou, e o motorista – vesgo – simplesmente nos abandonou! Desceu, atravessou a rua e entrou na padaria – se eu soubesse teria lhe pedido pra trazer um doce, quem sabe um sonho – ainda no embalo da poesia, abri a janela e me peguei admirando o sereno iluminado. No momento já estava bem mais denso e as cenas pareciam transcorrer em câmera lenta nessa minha viagem emotiva imprevista. Voltou o motorista, torno a dizer, vesgo, e jovem, claro que me chamou a atenção quando eu havia adentrado no ônibus.
Retomando o percurso, o sereno forte, iluminado, óbvio que pela luz de um poste, em que estava amarrada uma faixa, muito bem desenhada, cores em harmonia, enfim, chamando a atenção de forma muito agradável. Não recordo o nome do feliz homenageado, mas não esquecerei o que dizia: "Parabéns pelo seu aniversário, nós te amamos", e não pude ler os nomes dos autores da tão bem exposta homenagem, pois o ônibus já estava virando a esquina, e ironicamente me deparei com outra faixa, dessa vez presa nas grades de uma instituição pública – em que dizia: "Estamos em GREVE". Letras na cor vermelha e o fundo em amarelo, gritante... Achei interessante o contraste. Analisei brevemente algumas coisas entre o que diz o poema, o sereno, o contraste das faixas – motivos, objetivos, acasos e efeitos.
Mas a outra questão é que resolvi descrever o fato, e na situação, nada de papel, nada de caneta... ‘Ainda bem! O celular para quebrar o galho!’ Acessei as anotações da agenda, tentei escrever o mais depressa possível, até mesmo abreviando para não correr o risco de deixar para escrever os detalhes depois e nunca mais tornar a lembrar. Dei-me conta que o ônibus já estava chegando ao meu ponto de destino, eu teria que parar com as anotações. Só então vi que eu tinha esquecido completamente de fechar a janela e molhara o visor do meu celular. Num gesto breve, sequei-o com a beirada da camisa. Levantei, encaminhei-me para a saída. Só tinha esquecido mais uma coisa... Tinha esquecido de salvar!... Confesso, não esqueci não, mas creio ter causado uma reação interessante pra quem leu até aqui. Na verdade, perdi o texto-rascunho-inicial sim, mas foi pior do que ter esquecido. Abafada, pois já estava bem próximo ao ponto – mas bem próximo mesmo, sequei o visor do celular, levantei rapidamente e crente de que apertaria a tecla correta para gravar as anotações, apertei sei lá qual delas, menos a que deveria. Não tinha nem percebido. Na certeza de que tinha feito tudo certinho, desci convicta de que chegando logo em casa, passaria a limpo e terminaria de descrever o fato, e decidida a não mais deixar de escrever tudo que me chamasse a atenção, como sempre acontecia até então.
Só sei que chegando em casa e me deparando com o meu querido e básico aparelho, uma tela que não deveria estar aberta, que dizia “novo comentário”. ‘Ué!’ – pensei – ‘celular desgraçado, terei que lembrar tudo outra vez’. A diferença foi que dessa vez não desisti, esforcei-me e acho que consegui lembrar e passar, alguns dos vários detalhes que vi, senti, e queria de alguma forma, imortalizar. Teimosa que só, dessa vez pelo menos consegui, por mais simples que pareça ser. Superei um fantasma que muito me incomodava.
Quanto ao que me passou pela cabeça nessa junção e análise das cenas e imagens que me chamaram a atenção, guardarei para mim, a minha conclusão. “Para estar vivo basta morrer” – “um sereno iluminado” – “nós te amamos” – “Estamos em greve”. De repente eu compartilhe num dia qualquer, quem sabe até num poema, é uma idéia. Mas e você, o que acha?

* Jenny Faulstich

Um comentário:

Jenny Faulstich disse...

Blog de Leonor Vieira-Motta:

http://lv-motta.zip.net